Valdemar Ferreira Ribeiro
...Navegando nos Mares do Sul ... Observando o Norte
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UMA AVENTURA EM VISCONDE DE MAUÁ - BRASIL

“o mal pode servir de lição para o bem"

Ali , na pousada Tiatiaim , no interior da Serra da Mantiqueira , região montanhosa de Visconde de Mauá , entre a cidade do Rio de Janeiro e São Paulo , à beira do rio Preto de águas cristalinas e natureza exuberante , o autor desfrutava , sozinho mas consigo mesmo , suas férias em dias maravilhosos e refletia sobre o rumo de sua vida .

Pensava se valia a pena uma vida rotineira , aparentemente certa e sem muito marulhar mas sem grandes expetativas ou experiências profundas e intensas .

Nesta região da Serra da Mantiqueira ainda não se sentiam os efeitos da destruição ambiental e nela também moravam pessoas de personalidades fortes que buscaram ali uma vida alternativa com mais equilíbrio , vindos de cidades grandes como o Rio de Janeiro , S. Paulo , etc , e até de outros países , além dos moradores antigos , na maioria pessoas calmas e não infelizes e ricos de espirito ..

Mudar uma vida normal e rotineira adaptada à cidade grande , muitas vezes já com uma família estabelecida , é uma decisão muito difícil implicando por vezes riscos económicos e psicológicos e é necessário ter personalidade forte e equilibrada para executar tal tarefa de maneira consciente .

O autor , com 33 anos de vida , já tinha aprendido o bastante na cidade do Rio de Janeiro e seu espirito inquieto levava-o a querer descobrir novas formas de estar e ser na vida , novos valores e desafios e quando pela primeira vez se deparou com Visconde de Mauá , lugar de águas abundantes e cristalinas cachoeiras em cascatas e florestas no meio das montanhas e vales , não resistiu ao apelo .

Não queria mais continuar morando na bela cidade do Rio de Janeiro devido aos grandes conflitos e desequilíbrios ecológicos inerentes aos grandes espaços urbanos atuais e ao estresse da maioria das pessoas .

O autor decidiu mudar sua vida para esta região de Visconde de Mauá e ofereceu-se como voluntário para lecionar na principal escola estadual de nível secundário e primário da região e desenvolver um trabalho com objetivos sociais e ambientais e a escola da região aceitou sua colaboração .

Não era importante o tempo que iria morar ali naquela região e a vida diria até quando .

Transformar o mundo não é querer transformar os outros , não é modificar o comportamento dos outros humanos mas sim haver uma auto-transformação individual real e profunda em cada um , e implicitamente haverá uma transformação no mundo mas começando em si e não nos outros .

Organizando-se mentalmente para as novas mudanças de vida e consciente , o autor desfrutava os últimos dias das férias naquela região montanhosa sabendo a hora de voltar ao Rio de Janeiro , pedir demissão na maior empresa pública de informática da América do Sul aonde trabalhava como Analista de Sistemas Informáticos há muitos anos e em seguida iria instalar-se na região de Mauá exercendo a profissão de professor .

Aqueles últimos dias de férias eram desfrutados no acolhimento caloroso e meigo da pousada “Tiatiaim” , onde o António , moço da terra , era o responsável e com um modo simples de ser oferecia seus serviços gentilmente a quem ali repousava das lides .

No ultimo domingo das férias , o autor iniciou um passeio sozinho às onze horas da manhã e embrenhou-se pelas matas da região com uma lanterna , um leve agasalho , calçando botas de borracha e um cajado na mão e começou a subir uma trilha paralela ao rio Preto que levava em direção à nascente que brotava do alto daquela montanha denominada Pico das Agulhas Negras e que é o quarto pico mais alto do Brasil .

Subindo pela trilha , foi descobrindo vales enormes e profundos aonde a natureza se expressava ainda original e nos quais viviam alguns raros e interessantes seres humanos , espíritos muito fortes para conseguirem sobreviver naqueles espaços desafiantes .

Subindo o rio viam-se florestas , cachoeiras , variedade de pássaros , nuvens enormes que cobriam os vales e desapareciam rapidamente voltando depois a escondê-los como se brincassem .

Empolgado com tudo o que via e descobria só parou de subir às dezasseis horas e só após uma chuva que veio saciar a terra da sede e foi-se rapidamente matreira .

Molhado , decidiu retornar pela mesma trilha que ali o levara , apesar da enorme vontade em continuar o caminho de ida .

Ao voltar , encontrou uma nova trilha que parecia levar ao mesmo ponto de partida e curioso decidiu seguir por ela .

Como o dia passava rápido e o retorno estava demorando mais do que o previsto , decidiu abandonar esta trilha tentando encontrar a original e guiou-se pelo pôr-do-sol.

Relaxado e confiante na trilha do rio , quando iniciou o percurso de ida , não tinha observado corretamente o rumo do sol mas ainda assim tentou fazer cálculos aproximados para encontrar o caminho certo de retorno à pousada .

Eram dezanove horas e o sol já tinha ido embora quando constatou que estava perdido no meio daquela floresta .

Acendeu a lanterna e foi seguindo pela meio das árvores atento a alguma voz humana , alguma luz ou sinal que o ajudasse a sair dali mas não encontrou nenhum auxilio .

Entretanto tinha saído de meio da floresta e estava em área mais descampada mas precisava de andar com muita cautela e lentamente. .

Eram vinte e uma horas quando encontrou um pequeno curral no meio daquele mato baixo com um bezerro dentro e isso indicava sinal de seres humanos e tranquilizou-se um pouco , adquirindo mais confiança .

Era uma noite de inverno em pleno mês de julho , o céu limpo de nuvens e escuro , bem escuro , por ser noite de lua nova mas bastante estrelado , mais ainda por estar no alto da serra muito longe das luzes urbanas .

Visionava-se uma mar fantástico de estrelas naquela Via-láctea , o tempo estava muito frio e seco , o agasalho que trouxera era ligeiro e pouco aquecia , os pés estavam em feridas devido a ter andado com botas molhadas pela chuva e suor em terrenos pedregosos e desnivelados , estava cansado fisicamente e com muita fome .

O curral era pequeno e com telhado , aberto nas laterais e algumas tábuas a cercarem-no e se a dificuldade fosse a chuva estaria protegido mas no inverno chove pouco naquela região .

Viu uma tábua comprida e estreita no interior do telhado e alçando-se com as mãos ajeitou-se nela deitando ao comprido de lado pois de costas não era possível devido à pouca largura da mesma e tentou descansar um pouco .

Quinze minutos depois desistiu de ali continuar pois o frio aumentava bastante e congelava o corpo e só seria possível suportar o frio se aumentasse a circulação do sangue e por isso teria de andar ou pular .

Decidiu caminhar orientado pelo instinto e pela lanterna com pilhas já um pouco fracas , despediu-se do bezerro perdendo sua companhia , e cajado na mão lentamente foi subindo o caminho pois lá no alto talvez ficasse mais protegido dos animais selvagens , principalmente onças ou cobras que sabia existirem naquela região .

Sua ideia era subir o mais que pudesse até ao ponto mais alto dali e encostar em alguma árvore ou outra coisa de maneira a ficar protegido pelas costas e tentar suportar o frio , a fome e as feridas nos pés até à manhã seguinte .

Sabia que onças só atacam pelas costas e os animais só agridem se forem assustados ou se estiverem com fome e nalguns pontos mais selvagens da serra da Mantiqueira , por vezes , algumas onças atacam o gado .

Não resistindo ao cansaço empoleirou-se numa das árvores que encontrou pelo caminho e se acomodou o melhor possível tentando dormir um pouco e relaxou fechando os olhos mas o frio era tanto que dez minutos após desistiu e desceu voltando a caminhar lentamente .

Neste percurso encontrou alguns bois e vacas pernoitando livres naquele espaço e os animais assustaram-se possivelmente com a luz da lanterna confundindo-a com o olhar de alguma onça e instintivamente alguns dos animais fugiram em disparada mas um deles , talvez o líder da manada , resolveu enfrentar aquele animal humano estranho ali :

- Este touro , bufando e mugindo e com as patas dianteiras escavando o solo em preparação de ataque e estava à espera de um sinal qualquer para atacar .

Reagindo instintivamente , o autor em vez de mostrar receio procurou ter uma atitude de desafio focando a lanterna nos olhos vermelhos do animal perturbando-o com a luz durante alguns momentos .

Percebendo que o animal estava encandeado , rapidamente apagou a lanterna e muito ligeiro afastou-se sem ruído deixando-o indeciso ; entretanto o animal desorientado correu em sentido contrário ao de seu opositor , safando-se este do perigo .

Refeito do susto , continuou o percurso apoiado no cajado mas cada vez era-lhe mais difícil caminhar .

Eram vinte e três horas quando chegou a um ponto supostamente o mais alto dali e encontrou um pinheiro , uma Araucária , e como não viu mais nenhuma alternativa decidiu pernoitar ali até ao nascer do dia .

Por precaução , bateu com o cajado à volta do pinheiro para verificar se havia alguma coisa estranha que pudesse incomodar ou atacar e , sem sorte , assustou enormes formigas que ali habitavam , acabando-se a esperança de um pouco de encosto .

Perante esta situação difícil , constatou que estava completamente perdido na noite , ninguém o podia socorrer e apenas ele poderia se ajudar ; o frio não permitia ficar parado senão congelava , estava cheio de fome e sede e os pés doíam bastante mas não podia tirar as botas pois não as poderia depois calçar devido ao inchaço dos pés e sem botas seria impossível andar naquele caminho pedregoso e espinhoso .

O que fazer ?

Após esta reflexão , qual seria a melhor maneira para sobreviver nesta situação tornando-a o mais suave possível e talvez no dia seguinte encontrar uma solução ?

Em relação ao medo decidiu ficar de costas para a árvore sem encostar nela sentindo assim alguma proteção física e procurou relaxar a mente pois estava diante de factos difíceis e nos instantes de perigo o instinto de defesa precisa fluir .

Quanto ao frio , resolveu manter o corpo em permanente movimento de ginástica , no mesmo lugar , saltitando , abaixando-se e mexendo os braços , agitando-se mesmo sentindo o desconforto dos pés mas desse modo mantinha o corpo quente , fundamental para a sua sobrevivência naquela noite escura e fria .

Em relação à fome e sede , procurou desligar estas sensações físicas dirigindo a mente para o espetáculo grandioso que estava pela primeira vez diante de si e que era aquele céu majestoso com a Via-láctea perfeitamente identificada diante do olhar , estrada leitosa , e as constelações perfeitamente visíveis no horizonte daquela noite sem lua numa floresta de estrelas .

O autor acompanhou o nascimento , vida e morte de algumas constelações , estudando-as em seu percurso em relação à terra , viu a constelação Cruzeiro do Sul executar seu circulo sobre si mesma orientando o sul do planeta , como um marco .

A Via-láctea , qual estrada no céu em seu movimento espiral , seduzia a mente através do imaginário pulsar das diferentes vidas existentes naqueles biliões de pontos de anos-luz a refletirem o universo ao redor e o planeta terra em sua pequenez e que fazia parte desta imensidão .

As horas passaram diluídas no reflexo da noite e naquele espectáculo real .

Apesar de ter de passar a noite pulando em movimento constante e do sofrimento do corpo , agradeceu aos céus por aquele momento mágico da vida em que era ator e espectador .

A noite se esvaía rápida e aconteceu o nascer do sol , dali , do alto daquela montanha majestosa :

O horizonte cobriu-se de luz refletindo o brilho do sol naquele especial lugar da terra e sentia-se emoção , ali .

E veio a vontade de descobrir algum lugar que servisse de porto seguro para descansar o corpo .

Quando clareou bastante descobriu ao longe , quilómetros abaixo , um pequeno ponto branco supostamente a casa de algum camponês .

Lentamente , apoiado-se no cajado e andando de lado foi descendo a montanha em curvas e contra-curvas , aproveitando os relevos das encostas e as forças físicas que restavam .

Após algumas horas descendo as encostas , aproximou-se daquele ponto que vira ao longe e constatou ser a casa de um camponês e chegando perto pediu ajuda .

Indicaram-lhe a casa de seu Geraldinho que talvez o ajudasse e ficava a meia hora dali .

Mancando e mal andando , chegou à casa deste camponês mas no caminho encontrou uma vaca sangrando , toda rasgada , talvez por ter sido atacada por alguma onça que ali rondou à noite .

Chamavam àquele lugar de Fragália e o nome da região é Serra Negra .

O autor foi muito bem recebido pela família de seu Geraldinho e convenientemente alimentado pois estes camponeses são muito prazeirosos no acolhimento e possuem um espirito comunitário forte .

Após duas horas de descanso , seu Geraldinho orientou seu filho Alair para que levasse o autor à cavalo até à pousada de onde partira e que eles conheciam e ficava do outro lado das montanhas .

Após subir com o Alair algumas centenas de metros pela montanha que ficava atrás da casa ao encontro dos cavalos , seguiram por entre serras e florestas , por trilhas , durante seis horas até chegarem à pousada Tiatiaim , seu destino e de onde tinha iniciado esta aventura .

Sua ausência tinha sido notada e provocou algum alvoroço na região , tendo alguns moradores passado a noite subindo e descendo o rio Preto à sua procura mas o desânimo era geral e foi com alegria e festa que perceberam sua chegada junto com o Alair , cansado e ferido mas salvo .

O autor pediu desculpas a todos pelo transtorno que causou , foi imediatamente tratado e em seguida foi descansar após saciado da fome e sede mas sua mente estava contente .

Tinha sido um “mal que viera para bem” pois só assim pode vivenciar esta experiência que de outro modo talvez nunca pudesse experimentar e seguindo o conselho do poeta “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Valdemar Ribeiro
Enviado por Valdemar Ribeiro em 11/08/2010
Alterado em 13/10/2018